Um dos grandes passivos ambientais do Rio de Janeiro é o complexo de quatro lagoas na Barra da Tijuca e Jacarepaguá, área de rápida expansão na Zona Oeste da cidade. Assoreada e poluída, essa bacia hidrográfica se estende por um perímetro de 15 quilômetros, numa região populosa e industrial. Recuperá-la é um dos compromissos do governador Sérgio Cabral para a Olimpíada de 2016. O projeto, discutido em audiência pública no ano passado, conta com apoio de moradores, ambientalistas e empresas privadas. Promete interromper a degradação ambiental da região, que será o principal palco dos Jogos Olímpicos. Orçada em R$ 673 milhões pelo governo do Rio, a obra prevê até a construção de uma ilha-parque, com espaço de lazer para a população.
A largada para esse ambicioso projeto foi dada em junho, com o anúncio do vencedor da licitação. Ganhou um consórcio formado por três das maiores construtoras do país: Queiroz Galvão, OAS e Andrade Gutierrez. O desfecho dessa concorrência não era uma incógnita para interessados, só para o grande público. Informada sobre um arranjo para entregar a obra ao consórcio, ÉPOCA publicou, no dia 11 de junho, nos classificados de um jornal fluminense, um anúncio cifrado com o resultado. Só no dia 14 de junho, a Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) abriu as portas para a reunião a que os concorrentes compareceriam para entregar suas propostas lacradas. Até então, oito construtoras tinham feito visita técnica à obra, um pré-requisito para entrar na concorrência. Eram oito potenciais interessados.
No dia marcado, apenas dois representantes foram até a Avenida Venezuela, na região portuária do Rio. O critério era o menor preço. O que se seguiu confirmou o script do anúncio. No dia 17 de junho, numa nova reunião, às 17 horas, após a confirmação de que os dois concorrentes preenchiam as exigências do edital, foram abertos os envelopes das propostas financeiras. Ganhou o consórcio Complexo Lagunar, formado pelas três empreiteiras, com uma oferta 0,07% mais barata do que o máximo que o governo se dispunha a pagar. A construtora Odebrecht, segunda colocada, entrou com um lance quase igual ao orçado pelo governo. Diante do resultado anunciado na própria reunião, curiosamente, as empreiteiras não questionaram nada. Aceitaram, assinaram e foram embora.
“Uma empresa que oferece quase zero de desconto entra para perder. Nenhum orçamento é tão apertado que não admita um mínimo de desconto. Quando há disputa para valer, as construtoras partem para a guerra, tentam desqualificar a proposta e a habilitação da outra” diz o procurador da República Júlio Marcelo de Oliveira, do Ministério Público Federal no Tribunal de Contas da União (TCU). Oliveira comentou em tese o caso desta reportagem. Não acompanhou nem conhecia o nome das empresas participantes da concorrência. Como especialista em licitações públicas, estranhou a estratégia mansa dessa competição por uma obra tão cara no Rio.
O presidente da Comissão Permanente de Licitação da Secretaria de Estado do Ambiente do Rio, José Almeoni Mendes da Silva Pinho, riu ao ser informado de que ÉPOCA soube o resultado da concorrência antes. Almeoni diz que, antes da abertura dos envelopes, não dá para adivinhar quem ganhará ou fará proposta e que ele não sabia de nada. “Se eu soubesse de algo, teria levado aos meus superiores, porque aí estão burlando um processo que não é deles. É nosso. Não são eles que escolhem quem ganhará”, diz.
Treze dias antes da reunião para receber as propostas, a Odebrecht, perdedora na concorrência das lagoas, conquistara uma obra da Secretaria de Estado do Ambiente. Num consórcio com a construtora Carioca Christiani-Nielsen, sagrou-se vencedora numa licitação de R$ 600 milhões, um valor muito próximo da obra para recuperar as lagoas. O projeto destina-se a prevenir enchentes dos rios Pomba e Muriaé, no Noroeste do Estado. As perdedoras, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão – vencedoras na obra das lagoas -, fizeram, separadamente, propostas muito próximas ao lance vencedor. De novo, ninguém brigou. No projeto para os rios Pomba e Muriaé – que inclui construção de barragens, diques, muretas de concreto nas margens e recuperação de pontes —, 14 das 31 empresas que compraram o edital foram conhecer de perto o que deveria ser feito. Um desses construtores afirmou que o orçamento estava alto demais. “As obras não valem tudo isso”, disse, sob a condição de se manter anônimo. O TCU trabalha com a mesma hipótese.
ÉPOCA apurou que auditores do Tribunal encontraram indícios de so-brepreço da ordem de R$ 109 milhões, ou 18% do valor total estimado pelo governo do Estado. O cálculo exagerado veio, segundo informações preliminares da auditoria, de preços excessivos atribuídos a diversos serviços técnicos – algo sofisticado, que escapa ao olhar de um leigo. Os fiscais já pediram explicações aos responsáveis, entre eles o subsecretário Antonio Da Hora, da secretaria comandada pelo ex-ministro Carlos Mine (PV). Se ficar comprovada a suspeita, que inclui ainda a elaboração de um edital com cláusulas restritivas à participação de mais interessados, a licitação poderá, no limite, ser cancelada pelo TCU ou sofrer alguma reviravolta. O TCU auditou a concorrência porque ela é em parte bancada com verba federal e por sua relevância econômico-social, em áreas com alto risco de enchentes. As licitações estão reguladas pela Lei n-8.666. Não segui-la pode configurar de ilícitos administrativos a crimes sujeitos a pena de detenção e multa.
Segundo o presidente da Comissão de Licitação, José Almeoni, é comum empresas fazerem propostas muito próximas ao orçamento do Estado. “Fazem isso apostando que o outro não cumprirá algum requisito, um atestado, ou tentarão desqualificar a proposta do outro”, diz. Mas não foi o que aconteceu.
O Consórcio Complexo Lagunar (Queiroz Galvão, OAS e Andrade Gutierrez) informou que “participou da concorrência para as obras de recuperação ambiental do complexo de lagoas da Barra da Tijuca de forma legítima e de acordo com as regras aplicáveis”. Afirmou que venceu por ter ofertado o menor preço. A Odebrecht disse saber dos questionamentos do TCU à licitação do Noroeste do Rio e considerá-los normais. Em nota, afirmou ainda que o preço proposto na licitação das lagoas “foi o melhor a que conseguiu chegar para executar o projeto” e que não identificou razão para questionar o resultado. Sobre o resultado antecipado do vencedor, a Odebrecht disse que “não tem conhecimento do fato”. O subsecretário do Ambiente Antonio Da Hora informou que as duas licitações “passaram pelo escrutínio do TCE (Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro)”, que “analisou e aprovou ambas as concorrências”. Ele informou também já ter respondido ao TCU. Quanto ao preço da obra para reduzir os alagamentos, Da Hora afirmou ter sido calculado com base no Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e índices da Construção Civil (Sinapi), adotado pelo Ministério de Integração Nacional.
Em junho do ano passado, o governo do Rio pegou um empréstimo de R$ 3,6 bilhões do Banco do Brasil para o Programa de Melhoria da Infraestrutura Rodoviária e Urbana e da Mobilidade das Cidades do Estado do Rio de Janeiro. Parte desse dinheiro deveria ser usada na recuperação do sistema de lagoas da Barra e de Jacarepaguá. Estudos confirmam a necessidade de dragagem para desassorear as lagoas, que mal trocam água com o mar. Essa asfixia contribui para a proliferação de algas tóxicas e compromete a vida do mangue numa paisagem bela, mas repleta de lixo. O governo afirma já ter investido R$ 550 milhões em rede de saneamento para reduzir o despejo de esgoto nas lagoas. É urgente fechar todos os canais por onde escoa essa sujeira.
Fonte -Fonte Revista Época / Isabel Clemente